domingo, 30 de janeiro de 2011

Prefácio ao Livro "Cérebro e Ideologia"




PREFÁCIO

É muito comum, na nossa sociedade, a procura por pílulas ou soluções mágicas para aflições e dores cuja causa aquelas pílulas e soluções mágicas jamais alcançarão: o Prozac para os angustiados e depressivos, o Viagra para impotência sexual (qualquer que seja sua causa), o medicamento ou até a cirurgia para emagrecer (qualquer que seja a causa da obesidade), sem falarmos na enxurrada de drogas para quase todo tipo de “problema mental”. Existe um sem fim de exemplos desse tipo, em que o diagnóstico e a abordagem 
adotam perspectiva reducionista ou meramente “técnica” e evasiva do problema. Alguns dirão também cientificista”.

Existe, portanto, uma tendência corrente – de parte dos médicos e de parte do público – que se materializa na medicalização de problemas que raramente são medicalizáveis. De fatiar problemas cuja solução jamais será encontrada no fatiamento, na tendência a arrancar o problema do contexto ou das suas verdadeiras raízes. Ou na tendência a procurar saídas na esfera da neurologia, da psiquiatria, da ciência do cérebro, da bioquímica cerebral e assim por diante, para problemas cuja origem não é molecular e cujas soluções são 
reais e muito frequentemente de origem e natureza social, isto é, procedem de distúrbios e patologias sociais próprias de relações de classe e, particularmente, resultam dos antagonismos e da destrutividade próprios da sociedade capitalista decadente. Mediações bioquímicas são o que o nome diz (mediações) e sobre elas se assentam as determinações sociais; a estas a bioquímica está subsumida, não tem condição de ser jamais um substituto nem explicativo e muito menos curativo.

Este livro aborda essa problemática procurando desvelar e reorientar o raciocínio usual em direção a uma concepção mais crítica e dialética. Por essa razão - e ao recorrer a essa metodologia – os argumentos nele apresentados permitem colocar em discussão e apresentar ao leitor outra abordagem para os problemas vinculados ao cérebro e à totalidade complexa mente-cérebro-corpo-sociedade, neste caso tomando como base as relações sociais, a formação social capitalista e sua ideologia. 

Com muita propriedade, o autor, estudioso do assunto, vai mostrar a força da ideologia que encobre e termina de terminando a abordagem dos problemas comportamentais, mentais e médicos, os quais, normalmente, são tratados de uma forma reducionista, seja pelas chamadas ciências do cérebro, pelas “ciências da mente” (psicologia, etc.) ou pelo mundo das ciências humanas em geral. Várias explicações e vários enfoques parciais e questionáveis do comportamento mental serão objeto da crítica deste autor: a ideologia do volume cerebral, a das “localizações cerebrais”, a do cérebro como “substância química”, a ideologia do “cérebro triuno” (cérebro réptil, cérebro de mamífero pouco evoluído e cérebro de mamífero evoluído), a dos “dois hemisférios cerebrais” (em sua pretensa “assimetria funcional”), a ideologia do “paralelismo psicofisiológico” e, finalmente, a do cérebro como computador. 

Ao final da sua leitura e de acordo com a ótica adotada pelo autor, iremos perceber que esse processo de mistificação dos problemas mente-cérebro (e “corpo-e-alma”) vem historicamente sendo posto e reposto por meio de uma dinâmica que deriva da necessidade absoluta de autorreprodução da sociedade do capital, de autopreservação das classes dominantes. A lógica dessa dinâmica, sua necessidade é a de que as pessoas 
– sobretudo a classe trabalhadora – acreditem que suas vidas precisam ser controladas de fora, seus problemas vêm de fora, podem ser resolvidos pela droga, pelo bisturi, pela douta ciência, enfim, por todo e qualquer tipo de ferramenta “científica” ou de xamanismo que venha de algum lugar desde que este lugar não seja as relações sociais, de classe. 

Ou seja, a finalidade não-dita, sistemática e mais profunda de toda essa ideologização dos problemas do cérebro, da mente, é a de que não se altere a estrutura de poder social do capital sobre o trabalho, de alienação do trabalhador e que prevaleça o poder das grandes corporações e do imperialismo sobre a vida das pessoas e dos povos.

Conforme a época, conforme a moda, conforme o nível dos conhecimentos médicos, bioquímicos, afloram visões médicas, bioquímicas, cirúrgicas determinadas, que dominam a cena acadêmica, midiática, arrastam multidões para crenças como, por exemplo, a da separação entre o cérebro emocional e o racional, a das moléculas da felicidade (no cérebro como um mundo determinado em si mesmo pelas reações químicas), enfim, cria-se toda uma escola de pensamento que passa a substituir a necessidade imperiosa de mudanças sociais profundas por soluções ou paliativos químicos e cirúrgicos. Tais “soluções”, além de evitarem tocar 
na origem dessas aflições, são portadores de mutilações, intoxicações e efeitos colaterais que infernizam a vida de quem aceita essa ideologia imediatista e – por sua própria natureza fraudulenta.

As chamadas ciências da mente, assim como as do cérebro não são – e não podem ser – neutras em uma sociedade de classes. Carregadas de valores dominantes – a ideologia da classe dominante – as abordagens científicas costumam padecer de várias deformações que terminam formatando as técnicas, as aplicações práticas daquele conhecimento que, já em sua origem, já na condição de pesquisa científica, é de natureza sociomorfa. Isto é, estamos diante de conhecimentos ideologicamente formatados pelos valores da sociedade 
do capital, distorcidos. O reducionismo é apenas um desses males trabalhados pelo autor.

Viana explica muito bem esse processo cujo ponto de partida está em destacar a parte do todo, “consiste em postular a existência de um objeto de estudo e, posteriormente, conferir-lhe autonomia e importância” e, finalmente, aliená-lo das relações sociais, resvalando para o plano mágico, metafísico, fenomenológico, no qual reinam as pílulas mágicas, no qual prevalece – no caso dos problemas mentais e cerebrais – a medicalização, o fatiamento. A bioquímica do cérebro tem sua razão de ser, a cirurgia neurológica tem sua razão de ser, são ferramentas do conhecimento e de sua aplicação, mas não podem – e metodologicamente não devem – representar a chave e nem o ponto de partida para se abordar problemas “mentais” ou comportamentais. Antes, bem antes da medicalização, do processo de reducionismo “científico” encontra-se a totalidade: antes de se abordar um problema comportamental e/ou psíquico cirurgicamente ou com drogas, é puro reducionismo (sob manto de ciência) deixar de levar em conta carências alimentares, afetivas, angústias e ansiedades cuja gênese é social, decorrente das privações absurdas às quais as pessoas estão submetidas, cuja origem tem a ver com a alienação social, com o vazio existencial da sociedade alienada de classes, com
o desestímulo social, profissional, enfim, com a ausência da comunidade social autêntica, não mercantil, não fundada nas trocas econômicas. 

Nesta sociedade, no entanto, é assim que as coisas acontecem, é assim que a ciência costuma ser produzida (de forma marcadamente ideológica, deformada pelas relações sociais do capitalismo) e é por isso mesmo que, por conta de tais determinações sociais que, ao final de contas, o imediatismo e o reducionismo terminam marca da cultura “científica” dominante. Terminam sendo a base e o alimento da indústria da doença, do mercado de cirurgias e medicamentos, para doenças mentais, por exemplo, cuja solução implicaria necessariamente em mudanças escolares, ambientais e sociais de fundo. E cujo substrato de origem são relações sociais  economicamente fundadas – cujo antagonismo com as necessidades humanas, autenticamente humanas, é flagrante para quem enxergue com o olhar crítico. 

A grande contribuição deste livro é ampliar esse olhar crítico, provocar e desafiar o leitor na perspectiva de outro olhar que não seja o da falsa consciência sistematizada. 

Gilson Dantas
Brasília, 13/08/2008

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Prefácio do livro "O que é o marxismo?"


PREFÁCIO

A “superação do marxismo” é uma cantilena que vem sendo repetida há mais de um século por intelectuais e políticos representantes da burguesia. Em 1920 o filósofo austríaco Georg Lukács em um pequeno artigo, “A última superação do marxismo”1, afirmava: “É difícil que se passe um ano sem que Marx seja ‘superado’ por algum solícito livredocente ou por algum filósofo da moda”. Nestes tempos “pós-modernos”, segundo alguns intérpretes apressados, a mesma enxurrada dos acontecimentos que arrastou as experiências do dito socialismo real” para o fundo do vale da história teria levado junto a teoria marxista. Se assim ocorreu, então que dizer do resultado de uma pesquisa de opinião pública realizada pela Rádio BBC de Londres em 2005, quando seus ouvintes escolheram Marx como o mais importante filósofo de todos os tempos? Seria por acaso que até mesmo alguns economistas burgueses mais perspicazes reconheçam, neste início de século XXI, a atualidade da teoria do capitalismo formulada por Marx?

Os arautos da “pós-modernidade” adotam uma postura burocrática perfeitamente conjugada com uma visão idealista de mundo, típica da ideologia burguesa, que quer fazer crer que a história é produto de sentenças ditadas pelos donos do poder de plantão. Os críticos da modernidade, mas não necessariamente dos fundamentos da sociedade moderna, mais apropriadamente capitalista, não conseguem perceber que foi Marx quem submeteu, de forma inigualável, tanto o pensamento moderno quanto a realidade histórica de onde se originou e sobre a qual atua como legitimador. Esses pensadores “pós-modernos” são incapazes de perceber que o seu próprio pensamento é um dos produtos do seu tempo, diga-se de passagem, numa versão bastante vulgar. Um dos sinais da incapacidade desses intelectuais de ultrapassar os condicionamentos da ideologia burguesa está no seu apego a especialidades com recortes cada vez mais limitados, negligenciando a insuspeitável relação entre todas as dimensões da vida humana. É essa incapacidade de perceber que qualquer fenômeno humano não pode ser compreendido e explicado isoladamente que leva esses ideólogos, por exemplo, a negarem o papel fundamental das relações sociais e da luta de classes como condicionantes da produção das idéias. Preferem acreditar na autonomia dos pensadores ante a ordem social estabelecida, seja legitimando-a ou negandoa.

Acreditam tanto nessa independência que chegam a afirmar que a única realidade existente é a representação. Certa vez, ouvi de um historiador que “o passado não existe”, o que existiria seriam as representações que construímos acerca do passado. Seria o caso de perguntarmos: se o passado não existe, do que trata o historiador, visto que o presente também não poderia existir, já que tudo não passa de representação? 

Certamente, para esses intelectuais, a tese de Marx de que “O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual”, arrematada com a afirmação de que “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”2, careceria de fundamentos. Por vezes, chamam a isto de determinismo mecanicista ou economicismo ou, ainda, reducionismo. Não há dúvidas de que ignoram o real significado do materialismo histórico-dialético. Mais do que isso, desconhecem a obra de Marx no seu conjunto. Na verdade, leram muito mais as obras de alguns ditos “continuadores” do marxismo do que os textos do próprio Marx. O lado cômico dessa história é ouvir grande parte desses indivíduos se autoproclamarem “ex-marxistas”. As universidades e os partidos políticos ditos de “esquerda”, convertidos à social-democracia, estão repletos dessa subespécie, aqui e em muitas outras partes do mundo. A postura desses ideólogos teria efeitos menos danosos, não fosse o fato de muitos deles contarem com um numeroso público juvenil obrigado a ouvi-los cotidianamente, durante horas a fio, nos bancos das universidades, por determinações burocráticas.

Admitamos, entretanto que, embora tenhamos de apontar as limitações das críticas dos políticos e pensadores burgueses, é necessário reconhecer a responsabilidade de muitos vulgarizadores (no duplo sentido) da obra de Marx. O próprio Friedrich Engels, o maior colaborador intelectual de Marx, é considerado por alguns marxistas, dentre eles o autor desta obra, Nildo Viana, como um dos primeiros a distorcerem algumas das teses fundamentais do marxismo. Todavia, ninguém mais do que os intelectuais bolcheviques, cujos principais expoentes são Vladimir Lênin, Leon Trotsky e Joseph Stálin, teriam produzido interpretações equivocadas do pensamento de Marx. Tanto mais quanto se verificou a partir da vitória da Revolução Russa de 1917. A influência exercida pelo bolchevismo se estendeu aos mais diversos rincões do planeta, e dura ainda hoje. Por isso, não é estranho que se encontrem inúmeros continuadores dos equívocos
produzidos pelos seus criadores. 

As diferentes “leituras” e (in)compreensões dos escritos de Marx realizadas em contextos históricos – sociais, culturais, econômicos e políticos – diversos deram origem a uma multiplicidade de “marxismos”. Para um não marxista como Bobbio (1991), essa pluralidade não é propriamente “um escândalo”, inclusive a existência de ‘neomarxismos’, embora lamente que haja “um certo desperdício de energia intelectual na controvérsia entre os vários caminhos”. Energia que, segundo ele, “seria melhor empregada ao estudar com maior empenho os campos do saber que ficaram fora dos confins dos interesses dos fundadores e de seus discípulos mais diretos, bem como de seus seguidores e, o mais importante, a realidade sempre mais complexa do mundo que nos circunda” (p. 15).3 Bobbio parece não entender que a crítica ao oportunismo dos marxistas de ocasião é imprescindível para assegurar clareza na compreensão da teoria formulada por Marx. Além do mais, dá a entender que o simples fato de ser adjetivada como “marxista” uma corrente de pensamento é tão coerente com sua autodeclarada filiação quanto outra qualquer.

É por se colocar na contramão desse tipo de entendimento, que Nildo Viana continua produzindo trabalhos como este O que é o marxismo? Ao mesmo tempo em que rejeita esse “relativismo” de tipo bobbiano, que considera uma “manifestação da dispepsia dos intelectuais por motivos bastante questionáveis”, Viana dispensa também o emprego do adjetivo “marxiano”, bem ao gosto de Hobsbawm, que o utiliza para distinguir o pensamento de Marx da produção dos marxistas. Ele prefere a expressão “marxismo original”, entendido como “as idéias de Marx”, assumindo-se como marxista, mas não como “marxólogo”, qualificativo atribuído a estudiosos da obra de Marx como Raymond Aron. 

Como um crítico das mais diversas formas de ideologia, apresentem-se elas sob o rótulo de filosofia ou ciência, Nildo Viana tem dado importante contribuição ao esforço de recuperação do marxismo autêntico. Coerente com a sua opção teórica não se esquece de que “a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas. A teoria é capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se ad hominem, e demonstra-se ad hominem logo que se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem”.4

Nildo Viana é um dos mais prolíficos escritores marxistas da atualidade no Brasil. Além de publicar treze obras individuais em uma década (algumas já na segunda ou terceira edição), organizou várias outras, sem contar os inúmeros artigos publicados em revistas e capítulos de livros organizados por outros autores. Neste livro O que é o marxismo? o autor se coloca a tarefa de “apresentar uma definição do marxismo que dê conta de explicar, inclusive, o motivo da existência de vários ‘marxismos’”. Para tanto, submete o marxismo a uma análise na perspectiva do próprio materialismo histórico-dialético e procura explicitar o seu caráter ontológico, com vistas a chegar à definição da sua essência: expressão teórica do proletariado. Portanto, não se restringe a apresentar apenas uma descrição do marxismo, ultrapassa os limites da sua aparência e delineia a sua essência. Talvez, nesse ponto nesse ponto se encontra o maior mérito e la raison d’être deste livro. Certamente, é mais um importante trabalho que se soma aos demais, escrito em linguagem acessível, inclusive para leitores iniciantes. Alguma lacuna por ventura existente, não diminui o seu valor.
Aos que tiverem o privilégio de lê-lo, bom proveito.

1 Lukács se referia às sentenças de Oswald Spengler contra Marx, na obra Prussianismo e Socialismo. O artigo de Lukács está disponível em: http://www.marxists.org/portugues/lukacs/1920/misc/superacao-marxismo.htm Tradução de Nildo Viana.


2 MARX, Karl. “Prefácio”. In: Para a crítica da economia política; salário, preço e lucro; o rendimento e suas fontes: a economia vulgar. 2ª ed. – São Paulo: Nova Cultural, 1986. p. 25.

3 BOBBIO, Norberto et al. O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

4 MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
p. 151.




José Santana da Silva
Prefácio ao livro “O Que é Marxismo?”, de Nildo Viana (Rio de Janeiro, Elos, 2008).

Prefácio - Livro Os Valores na sociedade moderna


PREFÁCIO

Nada mais pertinente e atual do que um livro sobre Os Valores na Sociedade Moderna. Muitos autores contemporâneos incluíram em seus debates esta temática que abarca estudos cujo foco investigativo diz respeito à condição da mulher, da família, da criança e do jovem, incluindo, quase sempre, mesmo que secundariamente, a questão dos valores.

Contudo, sempre acabava por prevalecer uma lacuna relacionada com a produção de um conhecimento sistematizado sobre o conceito e a concepção dos Valores. Nesta obra, Nildo Viana, se propõe a preencher esse espaço de uma forma bastante enriquecedora esclarecendo desde o início sua opção por um conjunto de valores e desvalores. Por isso, oferece a nós, leitores, uma importante produção que, ao tomar como referencial a teoria social de Marx, constrói conceitos como axionomia em contraposição ao de axiologia, discute a relação entre valores, sentimentos e consciência; entre ciência, técnica e axiologia, ao mesmo tempo em que aprofunda criticamente várias questões, dentre as quais o processo de formação dos valores na sociedade capitalista.

Marx, desde o Manifesto Comunista, nos alerta para a questão dos valores, mostrando que, ao converter toda a dignidade e honra pessoais em valor de troca, a burguesia estabeleceu como valor fundamental não mais a liberdade mas a livre troca. Assim, o mercado tornou-se elemento central na esfera de infl uência da vida interior dos indivíduos, marcando defi nitivamente, na sociedade moderna, a relação entre valor econômico e honra. Conseqüentemente, a noção de indivíduo pautada nos valores de igualdade, liberdade e fraternidade, herdada do iluminismo do século XVIII extinguiu-se antes mesmo de ser concretizada. Como sociólogo e professor universitário em tempos de “ilusões pós-modernas”, nosso autor, convive cotidianamente, no meio acadêmico ou fora dele, com debates, concepções e leituras que acreditam numa superação da modernidade. Estaríamos, como lembrou Terry Eagleton, vivendo em meio a uma espécie de relativismo tolerante. Todavia, a leitura deste livro deixa claro uma opção política do autor, cuja tradição marxista concebe o trabalho como algo diretamente ligado à existência humana e, portanto, produtor de objetos valorativos.

Enfi m, a importância de um estudo dessa natureza reside principalmente no fato de que a modernidade provoca a fragmentação da realidade e nos oferece uma falsa perspectiva de autonomização dos objetos devido a reifi cação no mundo do capitalismo. É preciso, então, retomar o caráter social das coisas, da arte, de tudo aquilo que é socialmente produzido para compreendermos os valores como parte do universo dos homens, os quais mesmo desvalorizados pela sociedade da mercadoria, mesmo que transformados eles
próprios em mercadoria, insistem em constituir-se como sujeitos de sua história. Esta é a contribuição deste livro.

Veralúcia Pinheiro

Prefácio do livro:

Viana, Nildo. Os Valores na sociedade moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.

Prefácio do livro "Escritos metodológicos de Marx"


Um vigoroso estudo sobre 
o método em Karl Marx

João Alberto da Costa Pinto

            A obra de Nildo Viana afirma-se a cada livro publicado como uma das mais instigantes do marxismo brasileiro e o leitor terá a prova desse fato inconteste com a leitura desta notável introdução aos “escritos metodológicos de Marx”, que agora aparece na sua terceira edição. O jovem autor, que é professor de Sociologia na Universidade Estadual de Goiás, é responsável por um já expressivo conjunto de estudos marxistas com temas e problemáticas interdisciplinares em livros como Introdução à Sociologia (2006), A Dinâmica da Violência Juvenil (2004), Estado, Democracia e Cidadania (2004), entre outros títulos e dezenas de capítulos de livros e artigos em periódicos nacionais e internacionais. E a marca mais substantiva desse conjunto de obra é a reflexão teórica sobre a obra de Karl Marx, no qual este livro é o seu melhor exemplo.
            Nildo Viana compõe sua trajetória política e intelectual nos quadros do marxismo brasileiro a partir de sua prática na universidade, ressalvando-se de modo enfático que a sua perspectiva rompe radicalmente com os cânones que sempre fundamentaram essa cultura: o marxismo pecebista, o marxismo fenomenologista acadêmico e o marxismo de tintas politicistas de matriz gramsciana. Seu projeto marxista insere-se de modo intransigente e radical na cultura dissidente anti-capitalista, naquilo que a ortodoxia leninista-stalinista sempre convencionou chamar pejorativamente de “esquerdismo”. Exceto pela obra de Maurício Tragtenberg não há no Brasil uma tradição consolidada de heterodoxias marxistas pautadas fundamentalmente por posições anti-leninistas, propositora, portanto, da radicalidade política anti-capitalista de bases autogestionárias. Em língua portuguesa, oriunda das contradições sociais do processo da Revolução dos Cravos (Portugal, 1974 – 1978), apresenta-se também a obra e análise marxista de João Bernardo. Junto a esses nomes, coloca-se agora o de Nildo Viana, ressalvando-se, contudo, as substantivas diferenças teóricas que agregam entre si. Existe, portanto, em língua portuguesa e na historicidade do marxismo brasileiro um marxismo radicalmente heterodoxo porque fundamentalmente ortodoxo com a obra de Marx, ortodoxia afirmada pela necessidade contínua de se justificar teoricamente no confronto com a obra marxiana original, ao contrário, por exemplo, das práticas tão comuns da ortodoxia marxista brasileira que com poucas exceções sempre preteriu a obra de Karl Marx pela dos clássicos marxista-leninistas.
            É possível falar-se em “marxismo brasileiro” pela larga historicidade de trabalhos aparecidos ao longo dos últimos oitenta anos. O marxismo brasileiro, se pensarmos num dos seus principais cânones, a obra de Caio Prado Júnior publicada nas décadas de 1930 – 1970, sempre esteve envolvido com o sentido de se explicarem os significados do Brasil no mundo, os significados estruturais do Brasil na lógica da reprodução capitalista internacional. No entanto, práticas intelectuais que visassem à interpretação da obra original de Karl Marx, nunca foram uma marca estrutural dos clássicos do marxismo nacional. Poucos trabalhos de intelectuais brasileiros reuniram esforços nessa direção. Ressalve-se, no entanto, que o próprio Caio Prado Júnior foi um dos pioneiros nesse tipo de investigação, com a publicação na década de 1950 de dois extensos estudos sobre o modelo teórico de Marx e do marxismo em geral: Dialética do Conhecimento (02 volumes – 1952) e Notas Introdutórias à Lógica Dialética (1959). Estes trabalhos afirmaram uma das marcas indeléveis do marxismo brasileiro: o positivismo stalinista. As divergências políticas de Caio Prado Júnior com o Partido Comunista Brasileiro no que é demonstrado por estes dois trabalhos afirmavam o historiador paulista num campo stalinista ultra-ortodoxo, e nesse sentido, a programática do stalinismo pecebista era inquestionavelmente mais heterodoxa, por mais paradoxal que seja tal assertiva.
            É na cultura política pecebista que o marxismo brasileiro deitou suas raízes. O pioneiro foi Octávio Brandão, que além de ter elaborado a primeira tradução do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, em 1924 (tradução feita do francês), foi também o primeiro intérprete marxista da processualidade histórica brasileira, com o seu livro Agrarismo e Industrialismo (1926). O esforço pioneiro de Octávio Brandão trazia a marca do autodidatismo militante dentro de um ambiente fortemente marcado pelo positivismo e pelas estruturas programáticas do marxismo-leninismo reproduzidas internacionalmente pelas agências de propaganda stalinista do Comintern soviético, onde esse modelo teórico – político disseminou-se sob a produção stakhanovista de manuais de autores soviéticos como Lapidus e Ostrovitianov (autores de um manual de “economia política marxista” de muitas edições em português e que sempre foi vivamente recomendado por Caio Prado Júnior como leitura obrigatória para a formação do militante comunista brasileiro).
            O fato é que apesar de todas as dificuldades teóricas, instituiu-se no Brasil uma cultura marxista que mesmo não tendo na obra de Karl Marx o seu centro afirmador, forjou interpretações do Brasil radicalmente originais. Além dos trabalhos de Octávio Brandão e Caio Prado Júnior, até a década de 1960, as obras de Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães foram os melhores exemplos justificadores dessa assertiva, apesar das inúmeras diferenças teóricas que portavam entre si. Nelson Werneck Sodré, por exemplo, que foi a expressão cimeira dessa cultura pecebista tem uma obra de profunda e heterodoxa originalidade heurístico-interpretativa da realidade brasileira, marca que o distingue, dentro dessa cultura, como a mais fecunda e expressiva reflexão marxista brasileira do período.
            No Rio de Janeiro, nas páginas da revista pecebista Estudos Sociais (1958 – 1964) apareceram os primeiros estudos dedicados à obra de Karl Marx, geralmente em trabalhos traduzidos para o português de autores como Georg Lukács. Jovens marxistas brasileiros responsabilizaram-se por essas traduções e afirmariam-se logo a seguir, também como pioneiros no Brasil, de estudos sistemáticos sobre a obra de Marx, foi o caso, por exemplo, dos trabalhos de Leandro Konder. Em São Paulo, no mesmo período, nas páginas da Revista Brasiliense (1955 – 1964), editada por Caio Prado Júnior, aparecem os primeiros trabalhos marxistas de autores como José Chasin e Michel Lowy (que depois demarcariam carreiras no campo da heterodoxia marxista contemporânea, centrada principalmente no nome de Georg Lukács). Gravitando em torno dessa revista e dos trabalhos de Caio Prado Júnior, dentro da Universidade de São Paulo (USP), um grupo de jovens professores a partir de 1958 desenvolveu por vários anos uma experiência de leituras e estudos sistemáticos sobre a obra magna de Marx – O Capital. Essa experiência ficou conhecida como “Seminário Marx”. Do grupo, vários intelectuais projetaram-se posteriormente como responsáveis por algumas das mais fecundas investigações do marxismo brasileiro, principalmente, os trabalhos historiográficos de Fernando Novaes e os de cunho filosófico de José Artur Giannotti e Rui Fausto. A universidade passava a ser o segundo espaço institucional mais importante de realização de trabalhos marxistas no Brasil e essa projeção teórico-institucional teve vida até meados da década de 1980.
            Da década de 1980 aos atuais dias, o marxismo brasileiro sofreu a marca indelével do abandono, da abjuração teórica. Só os trabalhos de Jacob Gorender é que poderiam afirmar uma sobrevida ao marxismo como projeto teórico político de análise global. Da década de 1980 ao presente momento o marxismo tem sido sistematicamente rejeitado como modelo explicativo e como perspectiva política. Se o marxismo brasileiro nasceu nos quadros do pecebismo político, com a experiência acadêmica da década de 1980, viu-se derrotado politicamente em nome de um rigor formal de investigação. Nas práticas do marxismo acadêmico do período anunciava-se a derrota hoje tão visível. No entanto, de outras práticas acadêmicas é que aos poucos renasce o marxismo como perspectiva proletária, como perspectiva de estudantes proletários que não podem mais compactuar com a simples perspectiva de um dia tornarem-se gestores intermediários do capital transnacionalizado, dessas práticas de novo tipo nascidas nas frestas da universidade tecnocrática entre alguns professores e alunos é que aos poucos vão-se delineando relações sociais fecundamente anticapitalistas e é dentro de tais práticas que o livro de Nildo Viana se justifica historicamente.
            Nildo Viana apresenta-nos a questão do método em Marx sob uma perspectiva totalizante, isto é, apresenta-nos o conjunto da obra marxiana como um todo metodologicamente coerente, dissipando assim, certos relativismos que poderiam insistir ainda na presença de diferentes “perspectivas” (o Marx “romântico” dos escritos de juventude; o Marx “científico” dos escritos de maturidade). Essa atitude para com a obra marxiana justifica-se pelo fato de que a perspectiva política de Marx sempre se radicou nas lutas políticas, nos conflitos sociais de seu tempo, sempre esteve envolvido junto ao proletariado no confronto de classes imanentes na experiência capitalista, lutas essas em que Karl Marx como intelectual se determinava como sujeito histórico concreto. Sendo assim, o que nos ensina Nildo Viana é que o método de Marx deve ser percebido não como um instrumento apenas determinado à investigação histórico – sociológica de cariz acadêmico, por exemplo, mas fundamentalmente como um instrumento de combate às ferramentas ideológico-científicas do modo de pensar tecnocrático capitalista, ferramentas essas que no caso brasileiro em específico dão a sustentabilidade às funcionalidades da produção acadêmica na reprodutibilidade das práticas organizatórias da exploração capitalista.
            O método em Marx é um instrumento de ciência e é também um instrumento ideológico, mas não a ciência ou a ideologia convencionalmente vistas como expressões de pretensas verdades ou falsas consciências a desvelar, o método em Marx, afirma-nos Nildo Viana, é a expressão dos instrumentos abstratos de codificação das contradições da realidade concreta no capitalismo, expressão desveladora de um real sempre apresentado como fragmentado, como por exemplo, o apresenta a irracionalidade dos reacionarismos culturalistas apresentados como práticas de investigação científica no esteio da universidade capitalista, onde os “atores” sociais do concreto histórico na sua locução como objetos de investigação são pensados como entidades autoreferentes sem qualquer determinação de classe, surgindo como objeto apenas pela vontade de sua palavra ou imaginários narcisistas. Práticas de investigação acadêmica que na infâmia de sua covardia moral, não se conseguem perceber na função formadora de quadros gestoriais para a organização da exploração nas relações sociais capitalistas, sendo capaz unicamente de sustentar seus bovarismos intelectuais dentro de pequenas salas departamentais nas internas divisões fordistas da instituição. O teoreticismo acadêmico que trata o modelo marxiano como vã ideologia, que na sua arrogância pueril chuta Marx como um cão morto para assim, na bovina alegria dos puros e inocentes direcionarem seus ofertórios explicativos à miséria conceitual dos multiculturalismos e dos pós-colonialismos, a expressão máxima da covardia de intelectuais panglossianos satisfeitos consigo mesmos nas suas rotinas empresariais capitalistas no interior da universidade.
            O mérito do livro de Nildo Viana está justamente em retomar a radicalidade da perspectiva marxiana, por entender o método dialético como expressão política do proletariado, isto é, daqueles que se multiplicam aos bilhões como força de trabalho globalmente explorada pelo capitalismo. Enfim, o livro tem o extraordinário mérito de entender e apresentar a unidade da obra marxiana como expressão abstrata da verdade concreta das lutas de classe na história, como expressão teórico-conceitual transitória da própria transitoriedade da realidade histórica, por entender que o método na sua processualidade justificatória é apenas um elemento heurístico para atingir-se o concreto determinado dos fatos, as relações sociais nas suas determinações conflitivas da realidade histórica do capitalismo contemporâneo.
            Com os trabalhos de Nildo Viana desenham-se as possibilidades concretas de na tradição do marxismo brasileiro afirmar-se como definitivo o diálogo com a obra marxiana e apontarem-se assim as possibilidades de outras práticas intelectuais para o combate que pouco a pouco se vai instaurando na universidade brasileira contra os racionalismos positivistas tecnocráticos e/ou os irracionalismos culturalistas. 

Prefácio do livro: 
Viana, Nildo. "Escritos metodológicos de Marx", Goiânia: Alternativa, 2006.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Valores e Hegemonia, Uma crítica desbravadora da axiologia


Valores e Hegemonia, uma Crítica Desbravadora da Axiologia

Fabrício Arruda Santos

Um dos mais poderosos sustentáculos da sociedade burguesa é a cultura. Esta é o cimento da dominação burguesa, como já dizia Gramsci. A hegemonia burguesa na sociedade civil é tão forte que até os setores oposicionistas são reprodutores dela, mesmo quando fazem oposição. Isto está presente na razão instrumental, analisada por Horkheimer, no domínio da ideologia dominante, como já apresentado por Marx, mas há algo mais aí. O que é? Eis a pergunta. A resposta pode ser encontrada em um livro recentemente publicado por um dos grandes desbravadores da sociologia brasileira, Nildo Viana, a obra “Os valores na sociedade Moderna”. Nesta obra, Viana desenvolve elementos fundamentais para se pensar a reprodução da sociedade moderna, capitalista.

Uma das bases da ideologia e da razão instrumental, é a axiologia. Por isso a axiologia é mais forte e importante para explicar a dominação cultural burguesa do que a ideologia e a razão instrumental. Não se trata aqui de axiologia como "ciência dos valores", "ramo da filosofia" e sim tal como definida e analisada por Nildo Viana em sua obra Os Valores na Sociedade Moderna. Axiologia significa, neste caso, uma determinada configuração do padrão dominante de valores. Em outras palavras, são os valores dominantes em uma determinada sociedade, que podem assumir várias formas ou combinações (uma determinada configuração). Tais valores são produzidos socialmente, inculcados nos indivíduos desde a infância e o processo de socialização primária, expresso na família, escola, meios de comunicação, brinquedos, etc. Esse processo social de produção de valores está de acordo com as relações sociais existentes, reproduzindo-as e valorandoas. Elas expressam os interesses de reprodução das relações de produção capitalistas e se espalham por toda a vida social, engolindo os indivíduos. As escolhas, decisões, atitudes, idéias, dos indivíduos são condicionadas por seus valores e por isso a base da ideologia dominante e do conservadorismo, mesmo de setores dominados, é a axiologia.

Assim, os valores dominantes formam, nos indivíduos, valores fundamentais que eles reproduzem e internalizam, tornando-se dificilmente removíveis. A busca de ascensão social, sucesso, fama, poder, riqueza, ou seja, o mundo da competição está entranhado nas pessoas, bem como a importância da autoridade, dos dirigentes, dos governantes, dos diretores, e a mercantilização de tudo, no qual o ter predomina sobre o ser, e tudo vale pelo quanto custa. Estes elementos típicos das relações sociais burguesas se reproduzem na esfera dos valores. Trata-se da sociabilidade burguesa fundada na competição, burocratização e mercantilização que produz os valores dominantes e estes, por sua vez, reproduz tal sociabilidade.

Todos os indivíduos possuem valores fundamentais e valores derivados e a sociedade moderna molda os valores fundamentais, que são os correspondentes aos interesses dominantes. Os valores fundamentais são aqueles que ligados à valoração primária e se torna critérios para a valoração secundária, ligada aos valores derivados, ou seja, são meios de escolhas que determinam os demais valores. Isto se revela no nosso cotidiano, escola, ciência, arte, mundo dos objetos. Os filmes, as obras de arte, as produções intelectuais e científicas, são, predominantemente, axiológicos. Os programas de TV, brinquedos, objetos em geral (uma pessoa troca de mesa para ter uma mesa melhor, no sentido de lhe fornecer mais status e lhe colocar um minúsculo degrau acima na escala social) são predominantemente axiológicos. A ideologia tem como base a axiologia. A ideologia, no significado marxista, é uma falsa consciência. Essa falsidade não surge apenas das limitações intelectuais dos indivíduos. Ela surge por outro motivo, o não-querer ver, determinada pelos valores.

Um economista que apela para números para esconder a realidade da exploração, da miséria, do fracasso da qualidade de vida e do bem estar dos indivíduos, não está apenas sendo limitado intelectualmente devido a ideologia dominante na ciência econômica, mas também pelos valores que ele compartilha, a nível geral – predominantes em todos os grupos sociais, tal como a competição, e que se reproduz entre os economistas que, para realizar o valor do sucesso e ascensão social, precisa estar na moda e agradar, para ganhar financiamento, vender livros, etc. – e a nível particular – como economista e portanto indivíduo ressocializado para valorar os números, as estatísticas, dos resultados, em detrimento dos seres humanos. Uma das principais fontes da ideologia, da falsa consciência, é a axiologia.

Depois de perceber essas questões, vem a pergunta: qual a saída? Ou não há saída? Se existem valores dominantes, existem valores não-dominantes. A existência da dominação só pode ser pensada num processo no qual existam dominantes e dominados. A existência de valores dominantes mostra que existem outros valores, pois caso contrário haveria apenas valores, não seriam dominantes e seriam de todos e para todos. É por isso que existem valores divergentes, valores autênticos. Eles são autênticos por expressarem valores correspondentes à natureza humana, ou seja, que estão ligados aos princípios do trabalho não alienado – ou seja, da criatividade – e da cooperação – a sociabilidade entre iguais. Para explicitar estes valores, Viana cunha o neologismo “axionomia”, expressão de determinada configuração de valores autênticos.

A axionomia existe marginalmente na sociedade moderna, em grupos explorados e oprimidos, no proletariado, e outros lugares. Também existe em muitos indivíduos em contradição com outros valores que são portadores. Um indivíduo possui uma escala de valores e conflitos internos entre valores e por isso há uma luta interna dentro do indivíduo, assim como há uma luta social em torno dos valores. Uma das formas de corroer a hegemonia burguesa, afirma Viana, é buscar a transformação dos valores, realizar a crítica da axiologia e a defesa da axionomia. E a consciência tem um papel importante nesse processo, pois há uma influência recíproca entre consciência e valores e os conflitos internos dos indivíduos podem ter uma resolução positiva caso tenham consciência que grande parte dos seus valores são produtos sociais e axiológicos.

Assim, há uma luz no fim do túnel. E não poderia deixar de ser, pois Viana se destaca por ser um dos poucos sociólogos brasileiros originais e que não se rende ao conservadorismo, modismo, colonialismo cultural e que é um desbravador, no sentido que desbrava, abre novos caminhos, inova. Nada mais normal, portanto, que produza mais esta obra desbravadora.

Referência Bibliográfica 18


VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.

Fabrício Arruda Santos
Graduado em ciências sociais pela UFPE – Universidade Federal de Pernambuco.

Revista Es paço Livre, Vol. 5, num. 09, jan-jun./2010

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Resenha do Livro “O Capitalismo na Era da Acumulação Integral”


Para Compreender o Capitalismo Contemporâneo
Resenha do Livro “O Capitalismo na Era da Acumulação Integral”*

Marcos Lopes**


A sociologia e as ciências humanas na contemporaneidade possuem um grave problema: a falta de referenciais teóricos abrangentes que forneçam uma base explicativa da realidade do capitalismo contemporâneo. Sem dúvida, existem muitas obras (sociológicas e de outras áreas) sobre a realidade contemporânea, a “modernidade”, e outros temas. Isso não deve ocultar a visão de que é necessário reconhecer uma limitação grave na grande maioria destas obras, seja por sua base teórico-metodológica, seja por suas deficiências analíticas próprias. Grande parte da produção sociológica sobre o mundo contemporâneo se fundamenta em teorias e métodos limitados, que, obviamente, irão promover uma limitação na explicação da realidade contemporânea. Muitos caem num factualismo ou empiricismo que compromete a percepção da realidade concreta, outros caem em especulações e abstrações que não colaboram no processo de compreensão da realidade contemporânea, sendo mais ficções do que realidade.

Isso, em parte, é derivado do mundo cultural que nos cerca, os modismos, as representações cotidianas e a ideologia dominante, acaba sendo um obstáculo para uma visão mais ampla da realidade. Por outro lado, a própria complexidade das relações sociais e seu caráter mutável, é outro obstáculo. Assim, para o indivíduo conseguir perceber as relações sociais em que vive e como elas se formaram, é algo extremamente difícil.

A obra recém lançada de Nildo Viana, O Capitalismo na Era da Acumulação Integral, é uma exceção. O autor oferece uma grande contribuição para se pensar o capitalismo contemporâneo. Para tanto, a obra conta com uma forte base teóricometodológica, já desenvolvida pelo autor em outras obras, o que é um diferencial em relação a vários outros livros sobre o mundo contemporâneo. O autor não cai no empiricismo em momento algum, e isso o permite mostrar as mudanças sociais e históricas, a continuidade e descontinuidade. Também não fica preso num processo de criação de categorias abstratas que pouco acrescentam numa análise crítica e por isso contribui com o processo de revelar os problemas e questões sociais que hoje enfrentamos. Também não cede ao processo fácil e recorrente de ficar citando sempre os mesmos autores para explicar a realidade social contemporânea, num “eterno retorno do mesmo discurso”, onde a ousadia intelectual e criatividade ficam ausentes e aí vem os repetidores dos “grandes nomes” para dizer sempre o mesmo, tal como os grandes nomes fazem.

A obra de Viana não se limita a repetir o jargão e o discurso corrente de uma determinada ala acadêmica que se diz marxista e que estão sempre dispostos a cultuar autores da moda e salvadores da pátria da esquerda tradicional ou supostas alternativas e, assim, não se encontrará em tal obra a referência a autores como Kurz, Mészáros e Chesnais. Também não se rende a uma necessidade de subordinação aos modismos e autores consagrados pelos grandes nomes da sociologia contemporânea (Giddens, Bauman), tanto pelo fato do autor não ser apenas sociólogo, sendo também filósofo, quanto pelo fato de principalmente não se restringir a um mundo especializado e unilateral. Para aqueles que conhecem suas outras obras, sabem que o autor não só questiona a especialização do trabalho intelectual como adentra em inúmeras temáticas e disciplinas, o que o torna uma pessoa mais do que indicada para realizar uma abordagem da totalidade das relações sociais sob o capitalismo contemporâneo. É por isso que o autor consegue, dialeticamente, trabalhar a categoria de totalidade e entender o capitalismo como tal – indo além da mera análise chamada “econômica”, mas mostrando as relações recíprocas entre as mutações do processo de produção e as políticas estatais, as relações internacionais, as manifestações culturais.

O autor faz uma análise do capitalismo contemporâneo e realiza sua periodização, dando conta de explicar não somente o processo histórico do capitalismo, como suas mutações e características específicas em cada período. Através da noção de regime de acumulação, retomada e ressignificada a partir da escola da regulação e Benakouche, dotando o termo de caráter social e não economicista, incluindo o Estado, a organização do trabalho e as relações internacionais, apresenta o desenvolvimento histórico do capitalismo e focaliza o modo atual, o regime de acumulação integral, marcado pelo neoliberalismo, toyotismo, e neo-imperialismo (globalização, termo amplamente criticado em uma parte da obra). O autor, no primeiro capítulo, apresenta as suas bases teóricas ao discutir a teoria dos regimes de acumulação. Além de discutir algumas das várias propostas de periodização do capitalismo, mostrando seus limites, o autor esclarece o conceito de regime de acumulação e oferece sua periodização que aponta para o entendimento de que a história do capitalismo é marcada por uma “sucessão de regimes de acumulação”, tal como Marx já havia percebido que a história da humanidade é marcada por uma sucessão de modos de produção.

Na seqüência, o autor passa a tratar, o que é objeto de sua obra, do atual regime de acumulação. O regime de acumulação integral tem como elementos básicos e definidores a organização do trabalho comandada pelo toyotismo, a formação estatal de caráter neoliberal e por novas relações internacionais que instituem um neoimperialismo. Ele dedica a cada um destes elementos componentes do regime de acumulação integral um texto específico.

O texto sobre neoliberalismo é excepcional, inclusive com críticas precisas e corretas a Perry Anderson e outros intérpretes. O autor mostra que o neoliberalismo não é mera aplicação de uma doutrina (surgida na década de 1940) e sim produto de necessidades do capital e são estas que constrangem a retomada de ideologias produzidas em outras épocas, bem como a criação de novas e misturas ideológicas que a realidade concreta da organização estatal produz. Assim, dizer que determinado governo não é neoliberal porque não se encaixa na ideologia de um determinado autor é um equívoco que a partir destas reflexões perde razão de ser.

O texto sobre toyotismo é revelador e crítico. Além de discutir a gênese do toyotismo e recuperar o significado do processo de trabalho no capitalismo, que é processo de valorização, e questionar o “léxico dominante” (o que fará em vários outros momentos do livro no que se refere a várias palavras e supostos conceitos da moda), especialmente a falácia da suposta “flexibilidade” (um eufemismo que é aplicado a tudo e não explica nada, escondendo o caráter nada flexível das mudanças do mundo do trabalho). O objetivo do toyotismo e tudo que se relaciona com a chamada “reestruturação produtiva” é aumentar a extração de mais-valor absoluto e relativo, que, para se realizar, precisa do Estado Neoliberal, seu complemento necessário.

O texto sobre neo-imperialismo é esclarecedor, inclusive mostrando as especificidades dos Estados Unidos. Mostra a necessidade contemporânea do capitalismo de aumentar o processo de exploração a nível nacional e mundial, tanto nos países de capitalismo subordinado quando nos países imperialistas e a ampliação da exploração internacional.

O autor não se limita a analisar a base real das mutações contemporâneas, ou seja, a mudança nas relações de trabalho, políticas estatais e relações internacionais, e, na segunda parte da obra faz uma análise crítica e extremamente útil de determinadas ideologias contemporâneas. Além da crítica de Toni Negri e da ideologia da crise da sociedade do trabalho, há dois textos que se destacam: a crítica ao pós-modernismo e à ideologia da globalização. A análise do pós-modernismo, além de mostrar que é uma “armadilha ideológica” e que não se deve tomar o discurso pelo o que ele diz ser, retoma as origens históricas de um conjunto de ideologias que emergem a partir do novo regime de acumulação e servindo aos interesses de reprodução deste. Ao analisar a gênese do que o autor denomina “pós-vanguardismo”, a manifestação da ideologia “pós-moderna” na esfera artística, e do “pós-estruturalismo”, a sua expressão na esfera científica, coloca em evidência sua razão de ser e sua ligação indissolúvel com as mudanças sociais e históricas do capitalismo. A crítica da ideologia da globalização, que retoma os questionamentos de Bourdieu, Bauman e Forrester, indo além delas, coloca em evidência mais uma produção ideológica que cria fantasmagorias ideológicas para obscurecer uma real compreensão do mundo contemporâneo. Neste ponto, para quem não leu o livro, se daria por contente e entenderia que o autor faz uma introdução teórica que abre espaço para analisar o modo de produção capitalista em sua atualidade e sua íntima relação com a formação estatal e exploração internacional e também o mundo das ideologias, fornecendo um quadro geral da sociedade contemporânea. Porém, o autor não para por aí. Se desde o início as conseqüências sociais (aumento da pobreza, desemprego, entre outras) estão presentes,
a última parte do livro focaliza as lutas sociais e as mutações que ocorrem neste contexto. Uma discussão crítica sobre a ideologia da exclusão social e a análise do processo de lumpemproletarização é realizada e seguida por uma análise das lutas sociais contemporâneas, lutas no México, Argentina, Europa, ação da classe dominante e das classes exploradas, indo até as lutas culturais, da auto-ajuda até o microrreformismo e retomada de autores e concepções marginais (anarquismo, conselhismo, situacionismo) e pela necessidade capitalista de reprodução ampliada do mercado consumidor. O exemplo dos animais domésticos transformados em mercadoria que constrangem os indivíduos a comprarem outras mercadorias (ração, remédios, etc.) e o caso do computador que realiza o mesmo constrangimento, é útil para muitas pessoas refletirem sobre as ideologias da liberdade absoluta do indivíduo.

Assim, as lutas sociais no México, o chamado “movimento antiglobalização”, a rebelião na Argentina, são colocados no interior de um quadro teórico e analítico que supera a mera descrição e mostra as bases e tendências das lutas sociais. Sem um grande aprofundamento nestes casos específicos, já que não era o objetivo do trabalho uma análise pormenorizada e profunda de cada caso específico e sim a inserção destas lutas num movimento tendencial, revela o que gera tais lutas e como elas reconfiguram as manifestações culturais, ao mesmo tempo que são atingidas por estas. A ação estatal e o processo de violência e aumento da repressão, por um lado, e novas políticas estatais marcadas por um microrreformismo, são apresentados não como produto do acaso e sim como resultado de lutas sociais no interior de um novo regime de acumulação. A conclusão final do livro é surpreendente: enquanto muitos acham (e declaram) que o capitalismo está em crise, que as lutas na Argentina e México são os grandes exemplos a serem seguidos, que as revoltas na França ou o movimento antiglobalização é um novo movimento que veio para ficar, o autor afirma que, no fundo, não há nenhuma crise do capitalismo atualmente e que este continua se reproduzindo normalmente, assim como as lutas sociais contemporâneas (revoltas na Europa, rebeliões, etc.) são apenas as novas lutas cotidianas e ainda limitadas que tendem a se radicalizar com o continuidade do regime de acumulação integral, que tal como os outros regimes de acumulação anterior, não é eterno e também entrará em crise e que, todas as vezes que um regime de acumulação entra em crise, abre-se a possibilidade de sua transformação em crise do capitalismo, e, assim, torna-se possível a libertação humana e a autogestão social.

Enfim, é uma obra que aborda um conjunto de questões e numa concepção totalizante. A categoria de totalidade, defendida e explicitada pelo autor em outras obras, se corporifica neste livro e oferece uma rara contribuição para se repensar o mundo contemporâneo. E acaba se revelando uma obra como poucas produzidas na sociologia brasileira, tornando-se leitura fundamental para todos os cientistas sociais e pessoas preocupados com o destino da humanidade.

* VIANA, Nildo. O Capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo, Idéias e Letras, 2009.
* * Doutor em Sociologia Política/UFSC. Professor do Instituto Federal de Goiás/IFG.

Revista Sociologia em Rede, vol. 1, num. 1, Jan./Jul. 2010.


Resenha do livro "A Questão da mulher"



A Questão da Mulher: Uma análise crítica e uma esperança*


FABRÍCIO ARRUDA SANTOS


O livro A questão da mulher (1) tem como grande mérito não estar preso ao pensamento acrítico hoje dominante. Trata-se de uma coletânea de artigos sobre a questão da mulher que abarca a questão da opressão feminina, da violência contra a mulher e do trabalho feminino, além de conter também reflexões epistemológicas e sobre a ideologia do gênero, que, sem dúvida, estão relacionadas com as questões anteriormente colocadas.

O organizador Nildo Viana, autor de três ensaios, bem como Maria Angélica Peixoto, Veralúcia Pinheiro e Edmilson Marques, nos oferecem uma excelente análise da questão feminina. Esta obra aborda algumas questões de forma original, principalmente a crítica ao termo gênero, uma posição de extrema coragem e ousadia. Isto tudo no interior de uma abordagem que pode ser considerada multidisciplinar, envolvendo a sociologia, a história, a economia, a filosofia e outras ciências humanas.

A apresentação é muito boa e expõe que os autores do livro não possuem a mesma posição, embora o referencial teórico-metodológico praticamente seja o mesmo. Os textos são de boa qualidade, relacionam a questão da mulher com o movimento operário e o trabalho, apresentam a realidade da opressão feminina e da violência, a questão da mulher na comunicação, na política, no trabalho e discute conceitos, termos e métodos.

Enfim, é uma abordagem da questão feminina ao mesmo tempo geral, ampla, crítica e bem trabalhada. Os dois textos de destaque são Método Dialético e Questão da Mulher e Gênero e Ideologia, ambos de Nildo Viana. O primeiro explicita uma visão que ultrapassa as limitações metodológicas apresentadas por várias tendências contemporâneas, que é o isolamento da questão feminina das demais relações sociais, retomando a categoria de totalidade. A questão da mulher só pode ser compreendida se inserida na totalidade das relações sociais e não de forma isolada, o que faz cair no maniqueísmo ou no essencialismo. O segundo mostra as origens históricas e vinculações ideológicas do construto (falso conceito, unidade de um discurso ideológico, segundo explica o autor) gênero e ainda realiza a crítica da ''ideologia do gênero''.

Precisamos de livros assim, críticos, engajados, desmistificadores. O papel deste tipo de obra é questionar, romper com o discurso banal que povoam os nossos ouvidos, uma eterna repetição de lugares comuns recentemente produzidos e logo descartados. Assim, este livro tem o mérito de não ser mais um discurso banal e descartável sobre a questão da mulher, sendo uma obra de referência duradoura e que deveria ser inspirador de novas obras com o mesmo caráter.

1 - VIANA, Nildo. org. A Questão da mulher. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006.
* Publicado em: www.csonline.ufjf.br/artigos/arquivos/edicao2/.../CSO_Fabricio_res

Resenha do livro "Universo psíquico e reprodução do capital - Ensaios freudomarxistas"


Universo Psíquico e Reprodução do Capital: 
Ensaios freudo-marxistas

Renato Dias de Souza 1



No livro “Universo Psíquico e Reprodução do Capital: Ensaios Freudo-Marxistas”2, publicado pela editora Escuta, 2008, de autoria de Nildo Viana, foram reunidos quatro ensaios. Nestes destacamos a preocupação do autor em historicizar os diversos temas e sistematizar conhecimento sob as lentes da “crítica impiedosa do existente”, como propunha Marx. O professor da Universidade Estadual de Goiás realizou uma síntese entre marxismo e psicanálise. Não constituiu um conjunto homogêneo a partir de partes distintas ou justapondo essas duas perspectivas de explicação do universo psíquico e da
sociedade.

Ao contrário, repensou a psicanálise com as categorias do marxismo. Reconhecendo os avanços e limites desta na compreensão do processo de reprodução do capital, a partir da análise do universo psíquico. Utilizando o materialismo histórico-dialético, como método heurístico de perspectiva totalizante, foi possível que apresentasse críticas as idéias acerca do “princípio de realidade” e “princípio de prazer”, por exemplo. Pois, essas apresentam-se em muitas reflexões mediados pela dicotomia entre o interno (o inconsciente) e o externo (o consciente). Nos ensaios podemos verificar uma explicação totalizante das questões que se colocam acerca das relações sociais e o universo psíquico.

A perspectiva historicizante destes os situam na crítica a naturalização, com que alguns conceitos da psicanálise, são utilizados e tratam das relações sociais. Entre eles, as questões referentes ao “instinto de morte”, da psicanálise freudiana, e o conservadorismo que o associa a necessidade da repressão. Desse modo, Nildo Viana, não incorreu no esvaziamento da subjetividade das suas determinantes histórico-concretas. O universo psíquico, em especial a mentalidade dominante, é um dos elementos que possibilitam a reprodução do capital. Portanto é fundamental situarmos a constituição da psicanálise na história e explicarmos o universo psíquico na totalidade das relações sociais.

Afirma a necessidade de uma história crítica da psicanálise, que demonstre como o universo psíquico, constitui-se na sociedade moderna sob condições colocadas pelo processo de crescente mercantilização e burocratização das relações sociais. Oriundo da expansão e universalização do capitalismo intensificada após a Segunda Guerra Mundial. De modo que, as demais esferas da vida social, estejam condicionadas pelo modo de produção existente. O que nos possibilita explicarmos a simultaneidade entre o crescimento das “necessidades fabricadas” e os interesses da classe dominante.

No entanto, o autor, que é um crítico das concepções pseudomarxistas e seus mecanicismos, não oculta na sua análise, as lutas sociais que se opõem a exploração capitalista. A preocupação em apontar saídas onde tudo parece perdido, coincide com a crítica de Henri Lefebvre a Herbert Marcuse, que, também é questionado por Nildo Viana. Daí, a preocupação com que resgata as fantasias, sonhos e utopias como elementos que resistem à repressão e voltam ao consciente. Constituindo-se em manifestações de resistência à sociabilidade restritiva impostas pelo realismo político e o pragmatismo dos partidos e sindicatos, por exemplo.

A compreensão de que a consciência do indivíduo se constitui socialmente retoma a possibilidade de que o caráter teleológico dessa contribua na superação das condições dadas. Daí, podermos classificar as questões sobre o “instinto de morte” e o “Complexo de Édipo” como ficções freudianas. Pois estão circunscritas à naturalização do que é criado socialmente. Resultado de uma análise que faz a abjuração dos sentimentos, reconhecidos mas tornados obscuros na análise freudiana, em favor da paixão deste pelos instintos. Em resumo, a naturalização e o idealismo de análises que elaboram um modelo ideal e o tornam uma idéia fixa. Ao qual, a realidade, deverá se curvar.

Nildo Viana resgata a importância dos sentimentos e apresenta o amar como uma necessidade humana. Interessante observarmos que na sociedade em que vivemos, os desejos são reprimidos, mas as necessidades não deixam de existir. No livro “A Sagrada Família” de Marx e Engels, o amor também está associado ao humano, ao imediato, a experiência sensual, real, e, portanto, não metafísico. A emancipação humana passa por considerar os sentimentos ao invés da naturalização dos instintos. Não incorrendo, assim como alguns freudo-marxistas, como Erich Fromm, na proposição de saídas individualistas ou legitimação em determinada medida da repressão.

No entanto, reconhece a insuficiência com que o marxismo se preocupou com o universo mental dos indivíduos e a contribuição conseqüente de freudo-marxistas como Reich. Que situa-se na crítica a naturalização da repressão e não incorre na racionalização desta na sociedade, como faz Marcuse, que, ao afastar-se da teoria da revolução do marxismo, preocupa-se em constituir uma filosofia da psicanálise, com uma análise abstrata que desconsidera a existência de classes sociais antagônicas.

No último ensaio, “Marcuse e a crítica ao neofreudismo”, o autor reafirma a necessidade de compreendermos os temas colocados pela psicanálise não em sentenças abstratas ou empiricistas, mas em suas múltiplas determinações. De modo que a natureza humana não seja vista como imutável.

O livro é uma grande contribuição na compreensão da dinâmica da sociedade capitalista. Retomando a importância da descoberta do inconsciente realizada por Freud e associando-a as afirmações de Marx de como os homens e mulheres agem a partir das condições objetivas dadas. Oxalá possamos ler outros trabalhos que objetivem afastar a névoa do complexo processo de constituição do universo psíquico. Desvendando os conflitos sociais encobertos pelas explicações naturalizantes. Tendo como condição indispensável, a constituição de uma sociedade, onde os seres humanos realizem-se nas suas potencialidades.

1 - Mestre em História/UFG; Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás.
2 VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.


Vídeo sobre o livro Manifesto Autogestionário

Vídeo sobre capítulo sobre classes sociais em Introdução à Sociologia

Nova resenha do livro "Introdução à sociologia"



RESENHA
VIANA, Nildo. Introdução à Sociologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2006
 

Uma introdução à sociologia em grande estilo

 
A obra de Nildo Viana afirma-se a cada livro publicado como uma das mais instigantes do marxismo brasileiro e o leitor terá a prova desse fato inconteste com a leitura deste livro, esta excelente Introdução à Sociologia, recentemente publicada pela Editora Autêntica (Belo Horizonte), na Série Ciências Humanas, coordenada pelo autor. Nildo Viana que é professor de Sociologia na Universidade Estadual de Goiás (UEG) é responsável por um já expressivo conjunto de estudos marxistas com temas e problemáticas interdisciplinares em livros como A Dinâmica da Violência Juvenil (2004), Estado, Democracia e Cidadania (2004), Escritos Metodológicos de Marx (2001), entre outros títulos e dezenas de capítulos de livros e artigos em periódicos nacionais e internacionais. Nildo Viana compõe sua trajetória política e intelectual nos quadros do marxismo brasileiro a partir de sua prática na universidade, ressalvando-se de modo enfático que a sua perspectiva rompe radicalmente com os cânones que sempre fundamentaram a cultura marxista brasileira: o marxismo pecebista, o marxismo fenomenologista acadêmico e o marxismo de tintas politicistas de matriz gramsciana. Seu projeto marxista insere-se de modo intransigente e radical na cultura dissidente anticapitalista, naquilo que a ortodoxia leninista-stalinista sempre convencionou chamar pejorativamente de “esquerdismo”. Exceto pela obra de Maurício Tragtenberg não há no Brasil uma tradição consolidada de heterodoxias marxistas pautada fundamentalmente por posições antileninistas, propositora, portanto, da radicalidade política anticapitalista de bases autogestionárias.
O mercado editorial brasileiro tem inúmeros exemplos de estudos introdutórios à Sociologia. O que distingue o trabalho de Nildo Viana desses outros trabalhos é a sua perspectiva analítica originalíssima: uma perspectiva marxista radicalmente ortodoxa com a matriz marxiana, com a obra original de Karl Marx. Esse aspecto está admiravelmente exposto no paradigmático capítulo cinco – “Temas fundamentais da Sociologia” – onde o autor apresenta reflexão sobre quatro questões fundamentais à análise sociológica: a relação indivíduo – sociedade (percebida através do conceito de socialização), o problema da divisão da divisão social do trabalho (vista através do conceito de classes sociais), a questão da cultura e da ideologia e, por fim, a questão da mudança social.
Para o autor o processo de socialização do indivíduo na sociedade capitalista está marcado pela competição, mercantilização e burocratização. Tais marcas estruturais são oriundas do processo histórico da divisão social do trabalho intrínseco às determinações fundamentais do modo de produção capitalista, determinações essas, projetadas nas práticas interrelacionais das classes sociais.
Nildo Viana afirma que no modo de produção capitalista existem fundamentalmente duas classes sociais – a burguesia e o proletariado. A relação destas classes determina estruturalmente na sociedade capitalista a existência de outras classes sociais que têm sua existência determinada relacionalmente a formas secundárias de exploração, formas realizadas na ação institucional do Estado, do capital comercial e do capital bancário. Nessas configurações institucionais da sociedade capitalista estão reproduzidas formas de exploração outras que reproduzem de modo ampliado a relação de exploração central do modo de produção capitalista: a expropriação da mais-valia no ato da exploração burguesa da força de trabalho proletária. Exemplos dessa prática societal são o campesinato e a burocracia. O campesinato que não reproduz mais-valia é explorado pela classe dominante e a burocracia como classe aliada da classe dominante tendo no Estado o seu aparelho de ação fundamental. Como corolário desse modelo, o fato de que a ideologia com suas bases reais (nas classes sociais) teria de ser entendida de modo determinante como uma forma de pensamento sistemático que, no entanto, reproduz a deformação da realidade social por causa de sua origem determinada pela divisão social do trabalho. A ideologia como pensamento sistemático nasce das práticas do trabalho intelectual vinculado historicamente no capitalismo, enquanto modo de produção, às classes “auxiliares” ligadas à classe dominante (a burguesia), caso, por exemplo, dos intelectuais nas burocracias estatais.
A cultura na sociedade capitalista seria a expressão da consciência concreta de determinada classe social, a cultura, ao contrário da ideologia, é parte constituidora da totalidade histórica porque é a consciência própria de cada classe, que é sempre afirmada relacionalmente no confronto com as outras classes. Conforme o autor, a cultura seria então parte constituinte das práticas de classe, logo, elemento estrutural da realidade histórica. A ideologia seria então forma específica de pensamento complexo, uma falsa consciência sistematizada que pode “assumir a forma de Filosofia, Teologia, Ciência, etc.” (p. 127).
Do conjunto dessas questões aquela referente à mudança social fica de imediato subentendida como um processo social, nunca como uma lei natural ou qualquer outro teleologismo histórico. A mudança social seria então imanente aos conflitos sociais originados pelas práticas interrelacionais das classes sociais.
No livro, para chegar a este quadro analítico radicalmente centrado na perspectiva marxiana, o autor, nos quatro primeiros capítulos, desenvolve extensa e detalhada análise dos significados próprios do que é presentemente a Sociologia como ciência acadêmica na sua condição histórica de ciência intrinsecamente vinculada à afirmação da sociedade capitalista, considerando-se, principalmente, o quadro de suas referências clássicas em Max Weber e Emile Durkheim que procuraram afirmar a Sociologia no seu estatuto de ciência. Mesmo sendo considerado uma referência clássica fundacional, o projeto teórico de Karl Marx, ao contrário, jamais se tentou propor, afirma o autor, com qualquer premissa de cientificidade sociológica para a realidade capitalista.
O leitor obtém desta extraordinária introdução uma extensa e detalhada apresentação do desenvolvimento institucional da Sociologia ao longo do século 20, assim como o desenvolvimento institucional imanente à crescente complexificação das práticas capitalistas, com o autor, privilegiando nessa exposição, as marcas nacionais da cultura sociológica contemporânea, destacando-se com esse propósito, os percursos institucionais da sociologia alemã, francesa, norte-americana e a do “resto do mundo”, incluindo-se aí, a sociologia brasileira. Na sociologia alemã, o autor comenta de modo sucinto, mas objetivo, os percursos clássicos de autores-instituições como Max Weber, Ferdinand Tönnies, Georges Simmel, Karl Mannheim, Norbert Elias, Robert Michels, a Escola de Frankfurt, e ainda, os estudos sobre a indústria cultural elaborados por Dietr Prokop. Na sociologia francesa apresenta-se a escola durkheimiana (Marcel Mauss, François Simiand, Paul Fauconnet, entre outros) e as escolas rivais ao modelo durkheimiano centradas em nomes como os de Frédéric Le Play e o de René Worms em conjunto com Gabriel Tarde. Da experiência francesa apresentam-se ainda as trajetórias marxistas de Henri Lefebvre e Lucien Goldmann e a escola “sócio-objetivista” de Pierre Bourdieu e seus colaboradores como Passeron, Chaboredon, Boltanski e Wacquant, grupo que Bourdieu reuniu em torno da revista Atas de Pesquisa em Ciências Sociais. No caso norte-americano, os destaques são dados a Tornstein Veblen, ao funcionalismo de Talcott Parsons e Robert Merton, como também as críticas a esse modelo elaboradas por Wright Mills; considera-se ainda, a sociologia industrial de Elton Mayo, o empiricismo da Escola de Chicago em nomes como o do urbanista Louis Wirth e o interacionismo simbólico de G. H. Mead. No quadro amplo da sociologia do “resto do mundo”, o autor ressalva com muita razão, na sociologia britânica, apesar de ser um nome de projeção internacional, a “sociologia sem grande importância” de Anthony Giddens.
Enfim, desse amplo quadro objetivo, o que se destaca é que, na sua condição de livro introdutório, mas portador de uma perspectiva teórico-política marxista apresenta-se como peça profundamente inovadora aos estudos sociológicos universitários, trata-se, portanto de um livro de divulgação fundamental a qualquer bibliografia nos cursos de ciências sociais.
Da década de 1980 aos dias atuais, o marxismo brasileiro sofreu a marca indelével do abandono, da abjuração teórica, o marxismo tem sido sistematicamente rejeitado como modelo explicativo e como perspectiva política. Com as práticas acadêmicas colossalmente reacionárias que pululam no esteio universitário nestas últimas décadas, os vértices heurísticos do marxismo foram sistematicamente derrotados pelas práticas dos rigores formais de investigação que os gestores da cultura acadêmica impõem aos seus próprios campos de atuação numa escalada fratricida de lutas e locupletações entre camarilhas universitárias que absolutamente nada têm a dizer à realidade histórica da exploração capitalista que lhes faculta – na expropriação da mais valia – a sua miserável existência nos pálidos contracheques mensais. Entretanto, nessa mesma universidade, mas com outras práticas acadêmicas aos poucos renasce o marxismo como perspectiva proletária, como perspectiva de estudantes proletários que não podem mais compactuar com a simples perspectiva de um dia tornarem-se gestores intermediários do capital transnacionalizado, dessas práticas de novo tipo nascidas nas frestas da universidade tecnocrática entre alguns professores e alunos é que aos poucos se vão delineando relações sociais fecundamente anticapitalistas e é dentro de tais práticas que o livro de Nildo Viana se justifica historicamente. Com os trabalhos de Nildo Viana, e em especial com este estudo introdutório a uma das principais balizas científicas do conhecimento da sociedade capitalista, desenham-se as possibilidades concretas de na tradição do marxismo brasileiro afirmar-se como definitivo o diálogo com a obra marxiana e apontarem-se assim as possibilidades de outras práticas intelectuais para o combate que pouco a pouco se vai instaurando na universidade brasileira contra os racionalismos positivistas tecnocráticos e/ou contra os irracionalismos culturalistas.