domingo, 2 de janeiro de 2011

Resenha do livro "Senso comum, representações sociais e representações cotidianas"

 
Representações Cotidianas: Para além do senso comum e das representações sociais.

Resenha: CARDINALE, Paulo.

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Representações Cotidianas: Para além do senso comum e das representações sociais


Paulo Cardinale

O livro de Nildo Viana, Senso comum, representações sociais e representações cotidianas**, recém-lançado, é uma obra que merece uma atenção especial de psicólogos (especialmente os psicólogos sociais), sociólogos, epistemólogos, historiadores e outros profissionais da área de ciências humanas. A razão disso está no caráter amplo da obra, que abarca a temática do “saber cotidiano” de forma simultaneamente psicológica, histórica, sociológica, epistemológica. Torna-se, assim, referência obrigatória para todos os estudiosos da ciência e do saber cotidiano.

O livro pode ser dividido em duas partes, uma de análise crítica e outra propositiva. Na primeira parte, o autor realiza uma crítica da idéia de senso comum e representações sociais; na segunda parte, apresenta a teoria das representações cotidianas. A crítica da idéia de senso comum é realizada tendo por base em uma análise histórica do surgimento e desenvolvimento deste termo, cuja origem se encontra na luta da burguesia contra a nobreza e tendo um sentido positivo. O senso comum era o bom senso. Porém, com a emergência do proletariado e da cultura socialista o termo passa a ter um sentido negativo, tal como nas obras do sociólogo Durkheim e do psicólogo Gustave Le Bon. Le Bon buscou mostrar a irracionalidade do senso comum e Durkheim buscou separar senso comum e ciência, mais exatamente propor a ruptura entre estas duas formas de saber. A ruptura epistemológica proposta por Durkheim vai ser defendida por Bachelard e outros. Novas mudanças históricas promovem uma revisão na análise do senso comum, que com a estabilidade capitalista passa a ser visto como “verdadeiro” ao invés de “falso”, como anteriormente. Isto se esboça com a fenomenologia e se concretiza também na obra de Durkheim e também de Jung, ambos abordando a religião numa época de estabilização relativa do capitalismo. Além de mostrar as raízes históricas e sociais da noção de senso comum e mostrar os interesses de classe por detrás de sua emergência e mutação, o autor também critica as concepções sobre senso comum, mostrando que este é geralmente visto como um bloco monolítico, verdadeiro ou falso, de acordo com o contexto histórico. Viana afirma que as representações cotidianas, ou “senso comum”, não é um bloco monolítico, possuindo um conteúdo verdadeiro ou falso. Ele possui uma multiplicidade de manifestações, algumas verdadeiras, outras falsas. A justificativa de Durkheim e Jung, ao afirmaram que uma idéia é verdadeira por existir, é criticada por Viana magistralmente. Ele demonstra que uma coisa é a idéia existir, outra é se seu conteúdo é verdadeiro ou falso. Partindo de um exemplo de Jung, ele demonstra isso. Para Jung, o elefante é verdadeiro porque existe. Viana diz que o elefante existe e não é nem verdadeiro nem falso, pois estes termos são categorias da consciência e não da realidade. Da mesma forma, uma determinada idéia existe, mas seu conteúdo pode ser verdadeiro ou falso, tal como a idéia de que o ser humano pode voar, que, se alguém manifestar, existe, mas nem por isso será verdadeira.

A abordagem das representações sociais, inaugurada por Moscovici, também recebe forte crítica.  pensamento complexo, pois vem antes dele. O pensamento complexo sistematiza asEle mostra as raízes históricas e sociais desta nova “escola”, cuja origem ele mostra estar na competição da esfera científica, ou do “campo científico”, retomando expressão do sociólogo Pierre Bourdieu. Ele mostra que a inovação e competição no campo científico promovem a formação de escolas e teses, incluindo a das representações sociais. Ele retoma a obra de Moscovici e afirma que a maior parte de suas idéias são provenientes de Durkheim e Marx. Moscovici, inclusive, apresenta diferenças entre suas teses e de Durkheim atribuindo elementos a este autor que Viana contesta, mostrando que as “representações coletivas”, para Durkheim, não são estáticas e nem são da coletividade como um todo. Moscovici, conhecedor do marxismo, também desconsidera várias teses de Marx que ele retoma e não apresenta o criador. Nildo Viana denomina isso “escotoma”, que é uma forma de esquecimento, bastante comum na história da ciência, tal como ele mostra no caso de Darwin, que escotomizou a base de sua teoria da evolução já presente em Lamarck, e daí suas críticas a este, para que ele caísse no esquecimento. Foi o que Moscovici fez com Durkheim e, no caso de Marx, simplesmente não fez nenhuma referência. Isto está ligado ao contexto histórico da estabilidade do capitalismo nos anos 1960, quando emerge as concepções de Moscovici, e se ampliam a partir dos anos 1980, época do pensamento único neoliberal, cuja dissidência se enfraqueceu, principalmente após a queda do muro de Berlim.

Mas Viana não se limita a demonstrar as bases sociais e históricas da abordagem das representações sociais, pois ele também mostra suas limitações próprias, enquanto ideologia. Ele apresenta o caráter descritivo e não explicativo da abordagem das representações sociais, inclusive criticando aqueles que tentaram mostrar o papel explicativo desta abordagem. Viana também critica a idéia de que as representações sociais são verdadeiras e a ideologia da neutralidade que se esconde por detrás da abordagem das representações sociais, bem como vários outros detalhes, tal como a base em grupos taxionômicos ao invés de grupos sociais concretos.

Por fim, temos a parte propositiva. Após criticar as demais concepções, Viana busca esboçar uma teoria das representações cotidianas. Para isso usa a contribuição de Marx, Korsch, Gramsci, Bloch, Sorel, Bertrand e mais alguns. Ele inicia apresentando a contribuição marxista para a elaboração de uma teoria das representações cotidianas. Marx e sua teoria das concepções cotidianas, expressão das relações sociais e não produtos fantasmagóricos existentes por si mesmos é o ponto de partida. Viana mostra, a partir de Marx, Reich e Gramsci, entre outros, que as representações cotidianas podem ser verdadeiras ou falsas, e que as representações cotidianas do proletariado e classes exploradas em geral tendem a ser contraditórias, possuindo elementos verdadeiros e falsos simultaneamente.

Ele retoma alguns pensadores marxistas para resgatar suas contribuições. O caráter ativo das representações e idéias presentes em Karl Korsch, Ernst Bloch, Antônio Gramsci. Em Sorel, o caráter mobilizador das idéias se expressa na concepção de mito enquanto que em Bloch é a idéia de utopia que revela isso. Korsch já critica e supera o economicismo do pseudomarxismo e mostra que as idéias fazem parte da totalidade histórica e agem sobre ela. Michele Bertrand contribui com a análise sobre as diversas formas pelas quais as representações cotidianas atuam sobre a sociedade. Após este apanhado sobre a contribuição do marxismo para a elaboração de uma teoria das representações cotidianas, Viana passa a discutir as bases sociais das representações cotidianas de forma mais aprofundada. Para tanto, ele trabalha com os conceitos de modo de produção, modo de vida e cotidianidade. O modo de produção é a base material e constituinte das classes sociais e da divisão social do trabalho, que faz emergir um determinado modo de vida e cotidianidade. O modo de vida é mais amplo do que o conceito de modo de produção. O modo de produção é uma parte da sociedade, a parte que revela a forma de produção e reprodução dos bens materiais necessários para a sobrevivência da humanidade. O modo de produção é um modo de vida, mas o modo de vida não é um modo de produção, pois vai além dele, sendo também forma de vida nas formas de regularização, ou superestrutura social, instaurando uma cotidianidade que é a base das representações dos indivíduos.

Viana discute o que é o cotidiano e a cotidianidade a partir das contribuições de Agnes Heller, Georg Lukács, Karel Kosik e outros, para delimitar o cotidiano e mostrar suas características. As características da cotidianidade são a naturalização, a simplificação e a regularidade. Estes processos são apenas os seus aspectos formais e isto significa que possuem um conteúdo concreto, expresso no conceito de sociabilidade. Este conteúdo concreto manifesto na sociabilidade revela a base da produção de valores, sentimentos, representações, interesses, costumes. A vida cotidiana é a base real das representações cotidianas e estas, por sua vez, reproduzem as características formais da cotidianidade, a saber: a naturalização, a simplificação e a regularidade.

Contudo, Viana vai além disso e discute a relação entre representações cotidianas e consciência de classe. Ele distingue entre representações cotidianas e pensamento complexo (ciência, teologia, filosofia), demonstrando que com a divisão entre trabalho manual e intelectual, há também uma divisão entre os que produzem idéias sistemáticas e os que produzem idéias simples, não sistemáticas. Esse pensamento complexo assume várias formas e pode ser resumido ao conceito de ideologia. As representações cotidianas ilusórias são produtos das relações sociais limitadas dos indivíduos, da divisão social do trabalho e da especialização que geram uma percepção limitada da realidade (que não é totalizante) e devido aos interesses, valores, concepções, sentimentos, produzidos devido a posição social do indivíduo, sua situação de classe, irá ser um estímulo para a elaboração da falsa consciência, das representações ilusórias. O cotidiano das classes sociais é diferente e por isso as suas representações também são diferentes. A consciência do proletariado tende a ser uma consciência contraditória, mas que, com o desenvolvimento de suas lutas, supera sua contradição se tornando consciência correta da realidade, consciência revolucionária. Já a consciência burguesa possui limites intransponíveis e não pode ascender a uma consciência correta da realidade, é falsa consciência. As representações cotidianas são formas de consciência de classe, mas nem toda consciência de classe é representação cotidiana, pois também pode se manifestar como pensamento complexo. As representações cotidianas podem assimilar o pensamento complexo com sua popularização, mas ela é a base do representações cotidianas, produzindo uma falsa consciência sistemática ou uma consciência correta da realidade, ou seja, se tornando ideologia ou teoria. As representações reais geram teorias e as representações ilusórias proporcionam ideologias. Assim, a assimilação do pensamento complexo pelas representações cotidianas significa sua simplificação, e a assimilação das representações cotidianas pelo pensamento complexo significa sua complexificação.

Por fim, Viana aborda outras características formais das representações cotidianas, discutindo os conceitos de mentalidade e sociabilidade, entre outros. Para tanto, ele retoma a teoria de Festinger sobre a dissonância cognitiva e a tendência para sua redução para explicar as contradições e incoerências geralmente atribuídas às representações cotidianas. Ele demonstra que o núcleo das representações cotidianas é não-contraditório apesar de em sua totalidade ela possuir contradições e incoerências. Ele usa a distinção apresentada por Erich Fromm e Michael Maccoby entre convicção e opinião para explicar este processo. A determinação das convicções reside na mentalidade dos indivíduos, ou “caráter social”, conceito semelhante proposto por Fromm. A mentalidade expressa valores, desejos, sentimentos, e é a fonte de representações, idéias. Ela se manifesta sob a forma de tradição, valores, crenças, que fazem os indivíduos agir. Nesta esfera, não existe contradição. No reino das opiniões, ao contrário, pode haver as mais variadas contradições e elas inclusive podem contradizer as convicções do indivíduo.

Enfim, qual é a importância desta obra? Podemos dizer que é uma obra indispensável para quem trabalha com psicologia social ou sociologia da cultura, entre outras áreas do saber. A análise crítica do termo senso comum e da abordagem das representações sociais é muito boa e ajuda a refletir sobre os usos acríticos de determinados termos e concepções. A parte propositiva é excelente, pois abre um espaço para novas pesquisas, superando o caráter descritivo dos estudos sobre representações sociais e dando um passo adiante no sentido de fornecer uma explicação e um instrumento de análise para o pesquisador. Trata-se, portanto, de uma importante contribuição para pensar a produção das representações cotidianas e que permite sua compreensão e explicação.

* Paulo Cardinale é psicólogo e professor no ensino médio.

** VIANA, Nildo.

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