PREFÁCIO
A “superação do marxismo” é uma cantilena que vem sendo repetida há mais de um século por intelectuais e políticos representantes da burguesia. Em 1920 o filósofo austríaco Georg Lukács em um pequeno artigo, “A última superação do marxismo”1, afirmava: “É difícil que se passe um ano sem que Marx seja ‘superado’ por algum solícito livredocente ou por algum filósofo da moda”. Nestes tempos “pós-modernos”, segundo alguns intérpretes apressados, a mesma enxurrada dos acontecimentos que arrastou as experiências do dito socialismo real” para o fundo do vale da história teria levado junto a teoria marxista. Se assim ocorreu, então que dizer do resultado de uma pesquisa de opinião pública realizada pela Rádio BBC de Londres em 2005, quando seus ouvintes escolheram Marx como o mais importante filósofo de todos os tempos? Seria por acaso que até mesmo alguns economistas burgueses mais perspicazes reconheçam, neste início de século XXI, a atualidade da teoria do capitalismo formulada por Marx?
Os arautos da “pós-modernidade” adotam uma postura burocrática perfeitamente conjugada com uma visão idealista de mundo, típica da ideologia burguesa, que quer fazer crer que a história é produto de sentenças ditadas pelos donos do poder de plantão. Os críticos da modernidade, mas não necessariamente dos fundamentos da sociedade moderna, mais apropriadamente capitalista, não conseguem perceber que foi Marx quem submeteu, de forma inigualável, tanto o pensamento moderno quanto a realidade histórica de onde se originou e sobre a qual atua como legitimador. Esses pensadores “pós-modernos” são incapazes de perceber que o seu próprio pensamento é um dos produtos do seu tempo, diga-se de passagem, numa versão bastante vulgar. Um dos sinais da incapacidade desses intelectuais de ultrapassar os condicionamentos da ideologia burguesa está no seu apego a especialidades com recortes cada vez mais limitados, negligenciando a insuspeitável relação entre todas as dimensões da vida humana. É essa incapacidade de perceber que qualquer fenômeno humano não pode ser compreendido e explicado isoladamente que leva esses ideólogos, por exemplo, a negarem o papel fundamental das relações sociais e da luta de classes como condicionantes da produção das idéias. Preferem acreditar na autonomia dos pensadores ante a ordem social estabelecida, seja legitimando-a ou negandoa.
Acreditam tanto nessa independência que chegam a afirmar que a única realidade existente é a representação. Certa vez, ouvi de um historiador que “o passado não existe”, o que existiria seriam as representações que construímos acerca do passado. Seria o caso de perguntarmos: se o passado não existe, do que trata o historiador, visto que o presente também não poderia existir, já que tudo não passa de representação?
Certamente, para esses intelectuais, a tese de Marx de que “O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual”, arrematada com a afirmação de que “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”2, careceria de fundamentos. Por vezes, chamam a isto de determinismo mecanicista ou economicismo ou, ainda, reducionismo. Não há dúvidas de que ignoram o real significado do materialismo histórico-dialético. Mais do que isso, desconhecem a obra de Marx no seu conjunto. Na verdade, leram muito mais as obras de alguns ditos “continuadores” do marxismo do que os textos do próprio Marx. O lado cômico dessa história é ouvir grande parte desses indivíduos se autoproclamarem “ex-marxistas”. As universidades e os partidos políticos ditos de “esquerda”, convertidos à social-democracia, estão repletos dessa subespécie, aqui e em muitas outras partes do mundo. A postura desses ideólogos teria efeitos menos danosos, não fosse o fato de muitos deles contarem com um numeroso público juvenil obrigado a ouvi-los cotidianamente, durante horas a fio, nos bancos das universidades, por determinações burocráticas.
Admitamos, entretanto que, embora tenhamos de apontar as limitações das críticas dos políticos e pensadores burgueses, é necessário reconhecer a responsabilidade de muitos vulgarizadores (no duplo sentido) da obra de Marx. O próprio Friedrich Engels, o maior colaborador intelectual de Marx, é considerado por alguns marxistas, dentre eles o autor desta obra, Nildo Viana, como um dos primeiros a distorcerem algumas das teses fundamentais do marxismo. Todavia, ninguém mais do que os intelectuais bolcheviques, cujos principais expoentes são Vladimir Lênin, Leon Trotsky e Joseph Stálin, teriam produzido interpretações equivocadas do pensamento de Marx. Tanto mais quanto se verificou a partir da vitória da Revolução Russa de 1917. A influência exercida pelo bolchevismo se estendeu aos mais diversos rincões do planeta, e dura ainda hoje. Por isso, não é estranho que se encontrem inúmeros continuadores dos equívocos
produzidos pelos seus criadores.
As diferentes “leituras” e (in)compreensões dos escritos de Marx realizadas em contextos históricos – sociais, culturais, econômicos e políticos – diversos deram origem a uma multiplicidade de “marxismos”. Para um não marxista como Bobbio (1991), essa pluralidade não é propriamente “um escândalo”, inclusive a existência de ‘neomarxismos’, embora lamente que haja “um certo desperdício de energia intelectual na controvérsia entre os vários caminhos”. Energia que, segundo ele, “seria melhor empregada ao estudar com maior empenho os campos do saber que ficaram fora dos confins dos interesses dos fundadores e de seus discípulos mais diretos, bem como de seus seguidores e, o mais importante, a realidade sempre mais complexa do mundo que nos circunda” (p. 15).3 Bobbio parece não entender que a crítica ao oportunismo dos marxistas de ocasião é imprescindível para assegurar clareza na compreensão da teoria formulada por Marx. Além do mais, dá a entender que o simples fato de ser adjetivada como “marxista” uma corrente de pensamento é tão coerente com sua autodeclarada filiação quanto outra qualquer.
É por se colocar na contramão desse tipo de entendimento, que Nildo Viana continua produzindo trabalhos como este O que é o marxismo? Ao mesmo tempo em que rejeita esse “relativismo” de tipo bobbiano, que considera uma “manifestação da dispepsia dos intelectuais por motivos bastante questionáveis”, Viana dispensa também o emprego do adjetivo “marxiano”, bem ao gosto de Hobsbawm, que o utiliza para distinguir o pensamento de Marx da produção dos marxistas. Ele prefere a expressão “marxismo original”, entendido como “as idéias de Marx”, assumindo-se como marxista, mas não como “marxólogo”, qualificativo atribuído a estudiosos da obra de Marx como Raymond Aron.
Como um crítico das mais diversas formas de ideologia, apresentem-se elas sob o rótulo de filosofia ou ciência, Nildo Viana tem dado importante contribuição ao esforço de recuperação do marxismo autêntico. Coerente com a sua opção teórica não se esquece de que “a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas. A teoria é capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se ad hominem, e demonstra-se ad hominem logo que se torna radical. Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem”.4
Nildo Viana é um dos mais prolíficos escritores marxistas da atualidade no Brasil. Além de publicar treze obras individuais em uma década (algumas já na segunda ou terceira edição), organizou várias outras, sem contar os inúmeros artigos publicados em revistas e capítulos de livros organizados por outros autores. Neste livro O que é o marxismo? o autor se coloca a tarefa de “apresentar uma definição do marxismo que dê conta de explicar, inclusive, o motivo da existência de vários ‘marxismos’”. Para tanto, submete o marxismo a uma análise na perspectiva do próprio materialismo histórico-dialético e procura explicitar o seu caráter ontológico, com vistas a chegar à definição da sua essência: expressão teórica do proletariado. Portanto, não se restringe a apresentar apenas uma descrição do marxismo, ultrapassa os limites da sua aparência e delineia a sua essência. Talvez, nesse ponto nesse ponto se encontra o maior mérito e la raison d’être deste livro. Certamente, é mais um importante trabalho que se soma aos demais, escrito em linguagem acessível, inclusive para leitores iniciantes. Alguma lacuna por ventura existente, não diminui o seu valor.
Aos que tiverem o privilégio de lê-lo, bom proveito.
1 Lukács se referia às sentenças de Oswald Spengler contra Marx, na obra Prussianismo e Socialismo. O artigo de Lukács está disponível em: http://www.marxists.org/portugues/lukacs/1920/misc/superacao-marxismo.htm Tradução de Nildo Viana.
2 MARX, Karl. “Prefácio”. In: Para a crítica da economia política; salário, preço e lucro; o rendimento e suas fontes: a economia vulgar. 2ª ed. – São Paulo: Nova Cultural, 1986. p. 25.
3 BOBBIO, Norberto et al. O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
4 MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
p. 151.
José Santana da Silva
Prefácio ao livro “O Que é Marxismo?”, de Nildo Viana (Rio de Janeiro, Elos, 2008).
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