Valores e Hegemonia, uma Crítica Desbravadora da Axiologia
Fabrício Arruda Santos
Um dos mais poderosos sustentáculos da sociedade burguesa é a cultura. Esta é o cimento da dominação burguesa, como já dizia Gramsci. A hegemonia burguesa na sociedade civil é tão forte que até os setores oposicionistas são reprodutores dela, mesmo quando fazem oposição. Isto está presente na razão instrumental, analisada por Horkheimer, no domínio da ideologia dominante, como já apresentado por Marx, mas há algo mais aí. O que é? Eis a pergunta. A resposta pode ser encontrada em um livro recentemente publicado por um dos grandes desbravadores da sociologia brasileira, Nildo Viana, a obra “Os valores na sociedade Moderna”. Nesta obra, Viana desenvolve elementos fundamentais para se pensar a reprodução da sociedade moderna, capitalista.
Uma das bases da ideologia e da razão instrumental, é a axiologia. Por isso a axiologia é mais forte e importante para explicar a dominação cultural burguesa do que a ideologia e a razão instrumental. Não se trata aqui de axiologia como "ciência dos valores", "ramo da filosofia" e sim tal como definida e analisada por Nildo Viana em sua obra Os Valores na Sociedade Moderna. Axiologia significa, neste caso, uma determinada configuração do padrão dominante de valores. Em outras palavras, são os valores dominantes em uma determinada sociedade, que podem assumir várias formas ou combinações (uma determinada configuração). Tais valores são produzidos socialmente, inculcados nos indivíduos desde a infância e o processo de socialização primária, expresso na família, escola, meios de comunicação, brinquedos, etc. Esse processo social de produção de valores está de acordo com as relações sociais existentes, reproduzindo-as e valorandoas. Elas expressam os interesses de reprodução das relações de produção capitalistas e se espalham por toda a vida social, engolindo os indivíduos. As escolhas, decisões, atitudes, idéias, dos indivíduos são condicionadas por seus valores e por isso a base da ideologia dominante e do conservadorismo, mesmo de setores dominados, é a axiologia.
Assim, os valores dominantes formam, nos indivíduos, valores fundamentais que eles reproduzem e internalizam, tornando-se dificilmente removíveis. A busca de ascensão social, sucesso, fama, poder, riqueza, ou seja, o mundo da competição está entranhado nas pessoas, bem como a importância da autoridade, dos dirigentes, dos governantes, dos diretores, e a mercantilização de tudo, no qual o ter predomina sobre o ser, e tudo vale pelo quanto custa. Estes elementos típicos das relações sociais burguesas se reproduzem na esfera dos valores. Trata-se da sociabilidade burguesa fundada na competição, burocratização e mercantilização que produz os valores dominantes e estes, por sua vez, reproduz tal sociabilidade.
Todos os indivíduos possuem valores fundamentais e valores derivados e a sociedade moderna molda os valores fundamentais, que são os correspondentes aos interesses dominantes. Os valores fundamentais são aqueles que ligados à valoração primária e se torna critérios para a valoração secundária, ligada aos valores derivados, ou seja, são meios de escolhas que determinam os demais valores. Isto se revela no nosso cotidiano, escola, ciência, arte, mundo dos objetos. Os filmes, as obras de arte, as produções intelectuais e científicas, são, predominantemente, axiológicos. Os programas de TV, brinquedos, objetos em geral (uma pessoa troca de mesa para ter uma mesa melhor, no sentido de lhe fornecer mais status e lhe colocar um minúsculo degrau acima na escala social) são predominantemente axiológicos. A ideologia tem como base a axiologia. A ideologia, no significado marxista, é uma falsa consciência. Essa falsidade não surge apenas das limitações intelectuais dos indivíduos. Ela surge por outro motivo, o não-querer ver, determinada pelos valores.
Um economista que apela para números para esconder a realidade da exploração, da miséria, do fracasso da qualidade de vida e do bem estar dos indivíduos, não está apenas sendo limitado intelectualmente devido a ideologia dominante na ciência econômica, mas também pelos valores que ele compartilha, a nível geral – predominantes em todos os grupos sociais, tal como a competição, e que se reproduz entre os economistas que, para realizar o valor do sucesso e ascensão social, precisa estar na moda e agradar, para ganhar financiamento, vender livros, etc. – e a nível particular – como economista e portanto indivíduo ressocializado para valorar os números, as estatísticas, dos resultados, em detrimento dos seres humanos. Uma das principais fontes da ideologia, da falsa consciência, é a axiologia.
Depois de perceber essas questões, vem a pergunta: qual a saída? Ou não há saída? Se existem valores dominantes, existem valores não-dominantes. A existência da dominação só pode ser pensada num processo no qual existam dominantes e dominados. A existência de valores dominantes mostra que existem outros valores, pois caso contrário haveria apenas valores, não seriam dominantes e seriam de todos e para todos. É por isso que existem valores divergentes, valores autênticos. Eles são autênticos por expressarem valores correspondentes à natureza humana, ou seja, que estão ligados aos princípios do trabalho não alienado – ou seja, da criatividade – e da cooperação – a sociabilidade entre iguais. Para explicitar estes valores, Viana cunha o neologismo “axionomia”, expressão de determinada configuração de valores autênticos.
A axionomia existe marginalmente na sociedade moderna, em grupos explorados e oprimidos, no proletariado, e outros lugares. Também existe em muitos indivíduos em contradição com outros valores que são portadores. Um indivíduo possui uma escala de valores e conflitos internos entre valores e por isso há uma luta interna dentro do indivíduo, assim como há uma luta social em torno dos valores. Uma das formas de corroer a hegemonia burguesa, afirma Viana, é buscar a transformação dos valores, realizar a crítica da axiologia e a defesa da axionomia. E a consciência tem um papel importante nesse processo, pois há uma influência recíproca entre consciência e valores e os conflitos internos dos indivíduos podem ter uma resolução positiva caso tenham consciência que grande parte dos seus valores são produtos sociais e axiológicos.
Assim, há uma luz no fim do túnel. E não poderia deixar de ser, pois Viana se destaca por ser um dos poucos sociólogos brasileiros originais e que não se rende ao conservadorismo, modismo, colonialismo cultural e que é um desbravador, no sentido que desbrava, abre novos caminhos, inova. Nada mais normal, portanto, que produza mais esta obra desbravadora.
Referência Bibliográfica 18
VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.
Fabrício Arruda Santos
Graduado em ciências sociais pela UFPE – Universidade Federal de Pernambuco.
Revista Es paço Livre, Vol. 5, num. 09, jan-jun./2010
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