PREFÁCIO
É muito comum, na nossa sociedade, a procura por pílulas ou soluções mágicas para aflições e dores cuja causa aquelas pílulas e soluções mágicas jamais alcançarão: o Prozac para os angustiados e depressivos, o Viagra para impotência sexual (qualquer que seja sua causa), o medicamento ou até a cirurgia para emagrecer (qualquer que seja a causa da obesidade), sem falarmos na enxurrada de drogas para quase todo tipo de “problema mental”. Existe um sem fim de exemplos desse tipo, em que o diagnóstico e a abordagem
adotam perspectiva reducionista ou meramente “técnica” e evasiva do problema. Alguns dirão também cientificista”.
Existe, portanto, uma tendência corrente – de parte dos médicos e de parte do público – que se materializa na medicalização de problemas que raramente são medicalizáveis. De fatiar problemas cuja solução jamais será encontrada no fatiamento, na tendência a arrancar o problema do contexto ou das suas verdadeiras raízes. Ou na tendência a procurar saídas na esfera da neurologia, da psiquiatria, da ciência do cérebro, da bioquímica cerebral e assim por diante, para problemas cuja origem não é molecular e cujas soluções são
reais e muito frequentemente de origem e natureza social, isto é, procedem de distúrbios e patologias sociais próprias de relações de classe e, particularmente, resultam dos antagonismos e da destrutividade próprios da sociedade capitalista decadente. Mediações bioquímicas são o que o nome diz (mediações) e sobre elas se assentam as determinações sociais; a estas a bioquímica está subsumida, não tem condição de ser jamais um substituto nem explicativo e muito menos curativo.
Este livro aborda essa problemática procurando desvelar e reorientar o raciocínio usual em direção a uma concepção mais crítica e dialética. Por essa razão - e ao recorrer a essa metodologia – os argumentos nele apresentados permitem colocar em discussão e apresentar ao leitor outra abordagem para os problemas vinculados ao cérebro e à totalidade complexa mente-cérebro-corpo-sociedade, neste caso tomando como base as relações sociais, a formação social capitalista e sua ideologia.
Com muita propriedade, o autor, estudioso do assunto, vai mostrar a força da ideologia que encobre e termina de terminando a abordagem dos problemas comportamentais, mentais e médicos, os quais, normalmente, são tratados de uma forma reducionista, seja pelas chamadas ciências do cérebro, pelas “ciências da mente” (psicologia, etc.) ou pelo mundo das ciências humanas em geral. Várias explicações e vários enfoques parciais e questionáveis do comportamento mental serão objeto da crítica deste autor: a ideologia do volume cerebral, a das “localizações cerebrais”, a do cérebro como “substância química”, a ideologia do “cérebro triuno” (cérebro réptil, cérebro de mamífero pouco evoluído e cérebro de mamífero evoluído), a dos “dois hemisférios cerebrais” (em sua pretensa “assimetria funcional”), a ideologia do “paralelismo psicofisiológico” e, finalmente, a do cérebro como computador.
Ao final da sua leitura e de acordo com a ótica adotada pelo autor, iremos perceber que esse processo de mistificação dos problemas mente-cérebro (e “corpo-e-alma”) vem historicamente sendo posto e reposto por meio de uma dinâmica que deriva da necessidade absoluta de autorreprodução da sociedade do capital, de autopreservação das classes dominantes. A lógica dessa dinâmica, sua necessidade é a de que as pessoas
– sobretudo a classe trabalhadora – acreditem que suas vidas precisam ser controladas de fora, seus problemas vêm de fora, podem ser resolvidos pela droga, pelo bisturi, pela douta ciência, enfim, por todo e qualquer tipo de ferramenta “científica” ou de xamanismo que venha de algum lugar desde que este lugar não seja as relações sociais, de classe.
Ou seja, a finalidade não-dita, sistemática e mais profunda de toda essa ideologização dos problemas do cérebro, da mente, é a de que não se altere a estrutura de poder social do capital sobre o trabalho, de alienação do trabalhador e que prevaleça o poder das grandes corporações e do imperialismo sobre a vida das pessoas e dos povos.
Conforme a época, conforme a moda, conforme o nível dos conhecimentos médicos, bioquímicos, afloram visões médicas, bioquímicas, cirúrgicas determinadas, que dominam a cena acadêmica, midiática, arrastam multidões para crenças como, por exemplo, a da separação entre o cérebro emocional e o racional, a das moléculas da felicidade (no cérebro como um mundo determinado em si mesmo pelas reações químicas), enfim, cria-se toda uma escola de pensamento que passa a substituir a necessidade imperiosa de mudanças sociais profundas por soluções ou paliativos químicos e cirúrgicos. Tais “soluções”, além de evitarem tocar
na origem dessas aflições, são portadores de mutilações, intoxicações e efeitos colaterais que infernizam a vida de quem aceita essa ideologia imediatista e – por sua própria natureza fraudulenta.
As chamadas ciências da mente, assim como as do cérebro não são – e não podem ser – neutras em uma sociedade de classes. Carregadas de valores dominantes – a ideologia da classe dominante – as abordagens científicas costumam padecer de várias deformações que terminam formatando as técnicas, as aplicações práticas daquele conhecimento que, já em sua origem, já na condição de pesquisa científica, é de natureza sociomorfa. Isto é, estamos diante de conhecimentos ideologicamente formatados pelos valores da sociedade
do capital, distorcidos. O reducionismo é apenas um desses males trabalhados pelo autor.
Viana explica muito bem esse processo cujo ponto de partida está em destacar a parte do todo, “consiste em postular a existência de um objeto de estudo e, posteriormente, conferir-lhe autonomia e importância” e, finalmente, aliená-lo das relações sociais, resvalando para o plano mágico, metafísico, fenomenológico, no qual reinam as pílulas mágicas, no qual prevalece – no caso dos problemas mentais e cerebrais – a medicalização, o fatiamento. A bioquímica do cérebro tem sua razão de ser, a cirurgia neurológica tem sua razão de ser, são ferramentas do conhecimento e de sua aplicação, mas não podem – e metodologicamente não devem – representar a chave e nem o ponto de partida para se abordar problemas “mentais” ou comportamentais. Antes, bem antes da medicalização, do processo de reducionismo “científico” encontra-se a totalidade: antes de se abordar um problema comportamental e/ou psíquico cirurgicamente ou com drogas, é puro reducionismo (sob manto de ciência) deixar de levar em conta carências alimentares, afetivas, angústias e ansiedades cuja gênese é social, decorrente das privações absurdas às quais as pessoas estão submetidas, cuja origem tem a ver com a alienação social, com o vazio existencial da sociedade alienada de classes, com
o desestímulo social, profissional, enfim, com a ausência da comunidade social autêntica, não mercantil, não fundada nas trocas econômicas.
Nesta sociedade, no entanto, é assim que as coisas acontecem, é assim que a ciência costuma ser produzida (de forma marcadamente ideológica, deformada pelas relações sociais do capitalismo) e é por isso mesmo que, por conta de tais determinações sociais que, ao final de contas, o imediatismo e o reducionismo terminam marca da cultura “científica” dominante. Terminam sendo a base e o alimento da indústria da doença, do mercado de cirurgias e medicamentos, para doenças mentais, por exemplo, cuja solução implicaria necessariamente em mudanças escolares, ambientais e sociais de fundo. E cujo substrato de origem são relações sociais economicamente fundadas – cujo antagonismo com as necessidades humanas, autenticamente humanas, é flagrante para quem enxergue com o olhar crítico.
A grande contribuição deste livro é ampliar esse olhar crítico, provocar e desafiar o leitor na perspectiva de outro olhar que não seja o da falsa consciência sistematizada.
Gilson Dantas
Brasília, 13/08/2008